Araruama e a Urgência na Fiscalização: Adesão Indiscriminada a Atas de Registro de Preços abre brecha para a Corrupção na Prefeitura
A Prefeitura de Araruama, na Região dos Lagos do Rio de Janeiro, oferece um exemplo alarmante do uso controverso — e possivelmente lesivo — da prática de adesão a atas de registro de preços. Essa modalidade, prevista na legislação, permite que um ente público aproveite os resultados de uma licitação conduzida por outro. Mas, quando repetida de forma sistemática, sem critérios claros e com favorecimentos evidentes, abre brechas perigosas para o desperdício e até para a corrupção.
Um exemplo concreto e recente é o Contrato nº 06/SEDUC/2025, firmado entre o município de Araruama e a empresa CEJOM Comércio e Serviços Ltda, pertencente ao empresário Eduardo Curty Carvalhal, que também firmou contrato de compra de kits escolares no valor de mais de R$ 16 milhões no mês de abril, por meio de outra empresa em seu nome. O contrato, de mais de R$ 26,5 milhões, foi celebrado por adesão à ata de registro de preços do Consórcio Público Intermunicipal Multifinalitário do Alto Rio Pardo (COMAR), situado a mais de 800 km de distância. O empresário aparece como o beneficiário de contratos milionários obtidos sem a concorrência direta de empresas locais ou regionais — o que levanta sérias suspeitas sobre a existência de um ciclo viciado de contratações “por carona” que privilegia sempre os mesmos nomes.
O objeto: a aquisição de mobiliário escolar e itens de escritório para a Secretaria Municipal de Educação (SEDUC). À primeira vista, trata-se de uma demanda legítima. Porém, ao se analisar os valores unitários de diversos itens contratados, surgem indícios de superfaturamento, se comparados aos valores de mercado encontrados em uma simples pesquisa na internet. Uma estante simples, conforme as especificações e medidas propostas no contrato, por exemplo, pode ser encontrada por R$ 369,99 em sua versão reforçada — o valor representa um terço dos R$1.092, pagos pela Prefeitura.
O contrato em questão ainda chama atenção pelo uso de recursos próprios e royalties, fundos que deveriam ser usados com extrema responsabilidade. A Secretaria de Educação é responsável por autorizar essa contratação que, mesmo com estimativa inicial de 14% da ata original, soma dezenas de milhões de reais — um número desproporcional para um município de médio porte.
Prática seria legal, quando feita de forma específica
A adesão a atas de registro de preços é uma ferramenta prevista em lei que visa trazer eficiência à administração pública, permitindo que um órgão utilize os resultados de uma licitação feita por outro, sem necessidade de repetir todo o processo. No entanto, o uso indiscriminado dessa prática por prefeituras tem levantado sérias preocupações quanto à transparência, à economicidade e à integridade dos gastos públicos.
Quando mal utilizada, essa ferramenta também se torna um mecanismo para contornar a concorrência, evitar o debate técnico local sobre a vantajosidade do contrato, e excluir outras empresas com capacidade de fornecer os mesmos produtos por valores mais justos.
O mecanismo, originalmente concebido para racionalizar as compras públicas, tem sido utilizado por diversas administrações municipais como um atalho para contratações milionárias, sem o devido planejamento e sem a fiscalização adequada. Prefeituras que sequer participaram da licitação inicial passam a firmar contratos diretamente com fornecedores selecionados por outro ente, muitas vezes distante geográfica e administrativamente da realidade local. Essa desconexão facilita práticas obscuras.
Em muitos casos, o uso recorrente e mal justificado da adesão às atas cria um ambiente fértil para a corrupção. Fornecedores com relações privilegiadas junto a determinados órgãos licitantes acabam se beneficiando de contratos replicados em dezenas de municípios, sem concorrência real. Quando a licitação de origem é direcionada, superfaturada ou mal elaborada, o problema se multiplica com cada nova adesão. Trata-se, na prática, de uma terceirização da licitação — mas sem a devida responsabilidade e controle.
O Tribunal de Contas da União (TCU) e outros órgãos de controle já alertaram para a banalização desse instituto, que transforma a exceção em regra. A jurisprudência aponta que a adesão deve ser motivada, vantajosa e justificada com base no interesse público, e não usada como artifício para escapar do dever de licitar. Contudo, o que se vê com frequência são contratos celebrados com valores próximos ao limite permitido por lei, sem análise de mercado local, sem estudo de vantajosidade e com fornecedores sem histórico de atuação na região contratante.
Além disso, a própria estrutura da adesão pode ser usada como cortina de fumaça para práticas lesivas ao erário. O distanciamento entre o órgão aderente e a origem da ata dificulta a fiscalização e favorece o conluio entre agentes públicos e privados. Em alguns casos, contratos firmados por adesão não possuem cláusulas adequadas de controle de qualidade, logística ou penalidades, o que compromete a entrega dos serviços ou produtos e abre espaço para aditivos suspeitos.
A nova Lei de Licitações (Lei nº 14.133/2021) já impôs limites e critérios mais claros para a prática, mas sua efetividade depende da atuação firme dos tribunais de contas, dos ministérios públicos e da sociedade civil. A adesão a atas de registro de preços não pode ser um atalho para a ineficiência, a conveniência política ou o enriquecimento ilícito. É preciso restabelecer os princípios da legalidade, da moralidade e da economicidade nas contratações públicas — sob pena de manter aberta uma das portas mais discretas e perigosas da corrupção administrativa. O uso recorrente e obscuro de atas externas pode representar, além de má gestão, uma forma silenciosa de desvio de recursos.